Ao abordar como as autoridades da República do Congo, na África, circulam discursos que convocam os congoleses a construírem uma imagem positiva da capital do país a partir do conceito global das smart cities, Pype (2017) trata de como esse imaginário ocidental das cidades inteligentes, operadas por tecnologias wireless, com redes de serviços e de comunicação altamente conectadas, aparece deslocado da realidade dos centros urbanos africanos em desenvolvimento. A partir de sua etnografia em Kinshasa, capital do Congo, a antropóloga cunha o termo “smartness from below”, para tratar de toda criatividade e conhecimento (formal, informal e imoral) empregados pelos congoleses na superação das limitações de infraestrutura urbana a fim de se engajarem com a tecnologia no dia a dia, tornando-se, à sua própria maneira, “inteligentes” na cidade.

Antes dela, De Certeau (2014) se lançou à mesma jornada ao investigar o cotidiano “de baixo”, mapeando a potência criativa, dispersa e bricoladora dos consumidores que teimam em se desviar dos projetos como concebidos em sua idealização e produção, ao empregar os produtos que lhe são disponíveis em usos dissonantes e poéticos, tornando-se eles também fabricantes. Para vislumbrar justamente essa negociação de sentidos “entre a produção da imagem e a produção secundária que se esconde nos processos de utilização” (DE CERTEAU, 2014, p. 39), o autor conceituou esses dois polos produtivos como estratégia e táticas. A estratégia diz respeito a uma tentativa de contenção e enquadramento de um sujeito a partir de um polo produtivo que atua na construção e disseminação de um sistema de representações que se abre ao consumo.

Trata-se, portanto, de um discurso, de um código, de uma sintaxe através da qual se pretende gerir as relações desse sujeito-consumidor com aquilo que lhe é exterior.

É o que Baudrillard (1992) chamou de mercadorias-signos, ou o que o próprio De Certeau (2014, p. 43) denominou de “produtos-espetáculos onde se soletra uma economia produtiva”. Por outro lado, as táticas – sempre plurais – dizem respeito à margem de manobra desses consumidores, instante para resistência aos significados impostos, para a inventividade, para a arte do imprevisível, para a “caça não-autorizada” (DE CERTEAU, 2014). Trata-se, pois, da conjuntura de um consumo utilitário investido de um modo de pensar embebido de uma cultura – com seus conhecimentos populares e também informais e imorais, como verificou Pype (2017).

É nessa bricolagem, no momento de fazer, que se perde o controle sobre os usos e se abre espaço para a individualidade (lugar de pluralidade), para a política e para a ética.

Aprender com essa “inteligência de baixo” e com os usos e apropriações da tecnologia no cotidiano é uma maneira de aproximar as estratégias das táticas. É também uma oportunidade de iteração quando se aprende sobre consumos e costumes para se melhorar a produção de produtos, serviços e políticas públicas, tornando-os mais condizentes com as práticas – o que pode otimizar sua adoção, engajamento e retenção.

A partir de pesquisas qualitativas, o LiteraCity produz conhecimento científico aplicado que mapeia e traduz essas práticas em insights para entender o cotidiano em seu contexto sociocultural, colaborando assim para estratégias mais assertivas e para cidades conectadas mais representativas e colaborativas.

 

Marília Duque
Fundadora e pesquisadora PhD no LiteraCity

 

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Referências:

BAUDRILLARD, J. A ilusão do fim. Lisboa: Terramar, 1992.
DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. artes do fazer. Petrópolis: Editora Vozes, 2014.
DUQUE, M. Homo resiliens: moralidades e resistências da velhice mediada por smartphones em São Paulo. São Paulo: Escola Superior de Propaganda e Marketing, 2021.
PYPE, K. Smartness from Below: Variations on Technology and Creativity in Contemporary Kinshasa. Em: MAVHUNGA, C. C. (Ed.). . What do science, technology, and innovation mean from Africa? Cambridge, MA: The MIT Press, 2017. p. 97–115.