O letramento midiático (ou literacia midiática) diz respeito às habilidades para acessar, produzir e consumir conteúdos de forma crítica no ambiente informacional característico das sociedades midiatizadas. Ele é cada dia mais relevante para o consumo e a participação cidadã. O LiteraCity adota a perspectiva de que a literacia midiática no âmbito digital seja uma vantagem competitiva que impulsionará o acúmulo de outras vantagens ao longo da vida, exacerbando desigualdades entre indivíduos e grupos sociais – e com destaque para as pessoas idosas, o grupo etário que mais cresce no Brasil. O argumento se fundamenta na teoria da Vantagem Cumulativa (Cumulative Advantage theory –CA), que também embasa a máxima “ricos serão mais ricos e pobres serão mais pobres”.

Vantagens e Desvantagens postas em perspectiva.

Não por acaso, a CA também é abordada como uma teoria da desvantagem cumulativa, dependo se a ênfase é dada a uma vantagem ou a uma desvantagem que desencadeará o aumento das desigualdades relacionais. Considerando a escolaridade como um dos preditivos mais consistentes para usos de TCIs, a literacia midiática pode e deve ser vista como uma das possíveis vantagens cumulativas decorrentes do grau de instrução, ao lado de outras acumuladas ao longo da vida como tipo de trabalho, renda e acesso à saúde – e que influenciarão estilos de vida, cuidado de si e autonomia na velhice.

Por outra lado, a literacia midiática também pode ser vista como uma vantagem per se nas sociedades contemporâneas. Mais do que isso, a falta dela nesse contexto digital deve ser vista como preditiva do acúmulo de outras que, também imbricadas nos processos de midiatização, exacerbarão desigualdades sociais.

Exemplificando esse efeito no acesso à saúde.

Grau de escolaridade é comumente identificado como fator influenciador do status da saúde do indivíduo, sendo barreira para campanhas educativas e preventivas, entendimento, adesão e continuidade de tratamentos. Ou seja, escolaridade define o nível de literacia médica (Health Literacy) como habilidade do indivíduo de acessar e processar informações de saúde cuja análise o capacitaria para participar ativamente da sua gestão. O uso de TICs para provisão de saúde demanda novas habilidades desse indivíduo. No contexto de acesso a recursos de saúde via tecnologia, a literacia midiática se torna peça-chave para o que se atualizou como Literacia Digital para Saúde (Digital Health Literacy ou e-Health Literacy).

Estudo realizado com cidadãos europeus mensurou justamente o impacto do uso da internet para o empoderamento para gestão da saúde. A pesquisa conclui que o grau de literacia digital (mas seria apropriado especificá-la como literacia midiática) definirá se um cidadão será informado (acessa as informações) ou empoderado (toma decisões a partir da análise das informações que acessa). E destaca dois grupos vulneráveis: com baixa escolaridade e com maior faixa etária.

A relação educação, literacia midiática e literacia digital para saúde podem ser elencadas na perspectiva da CA, especialmente em seus efeitos para autonomia, participação e qualidade de vida de pessoas idosas, como demostra essa revisão bibliográfica que analisou 40 artigos empíricos sobre iniciativas para o letramento midiático nesse grupo etário.

Consideramos a hipótese, entretanto, de que o baixo nível de literacia digital para saúde entre pessoas idosas não esteja necessariamente atrelado à escolaridade. Essa foi a observação feita durante a pesquisa de campo em São Paulo que embasou a tese de Marília Duque, fundadora e pesquisadora do LiteraCity, e resultou no artigo “Can Older People Stop Sharing?” em co-autoria com o Prof. Dr. Luiz Peres-Neto. Nele, os autores tratam dos efeitos da literacia digital entre pessoas idosas para o compartilhamento de Fake News e como determinante da maneira como buscam informações de saúde confiáveis. No caso dos participantes da etnografia de Duque, independente do grau de instrução, observou-se um afastamento das buscas online por incapacidade de avaliação dos conteúdos de saúde encontrado na rede, como ilustrado abaixo:

 “Tem muita informação errada. Eu prefiro seguir a recomendação do médico”
Mulher, 70 anos, educação superior completa

“Porque a internet é meio assustadora, né? Ela vai pra um canto totalmente vasto, que você se perde ali, com tanta informação ali. […] Eu falei: não! Vou sair daqui. Vou perguntar direto pro médico e ele vai me dar a informação certa. Não gosto. Uma vez eu fiz isso e fiquei mais assustado do que me ajudou”.
Homem, 59 anos, educação fundamental

Envelhecimento e literacias digitais.

A relação entre baixa literacia midiática e idade pode ser explicada pelo fato de pessoas idosas serem novas usuárias de internet (segundo TIC Domicílios de 2022, 57% dos brasileiros com 60 anos ou mais sequer são usuários da rede), o que acarretaria, entre outras consequências para a saúde, o desconhecimento das lógicas algorítmicas na ordenação apresentada pelos mecanismos de busca, com embaralhamento entre anúncios publicitários, conteúdo leigo e especialista. Além disso, variações no nível de literacia midiática entre pessoas idosas podem resultar do fato delas não terem desenvolvido essas habilidades ao longo do curso de vida, seja na vida escolar ou na vida profissional.

Considerando o contexto de digitalização de produtos e serviços além da saúde, a literacia midiática impactará ainda a interface entre cidadãos e governos, podendo deixar o grupo etário que mais cresce no País à margem daquilo que se desenha como governo digital, como demonstrou um estudo recente conduzido no Brasil.

Por último, cabe lembrar que o impacto das habilidades digitais já deve ser considerado no potencial de empregabilidade das pessoas idosas. Não se trata apenas do impacto do #idadismo no preconceito de que profissionais idosos são menos capazes ou oferecem resistência à adoção de tecnologias no trabalho. As habilidades midiáticas podem definir a eficiência das suas buscas online, seja por ofertas de cursos para se manterem aprendendo e atualizados, seja por vagas de emprego cada vez mais centralizadas nos canais digitais, minimizando assim suas oportunidades futuras.

Por esse e outros motivos, a Educação Midiática deve ser considerada como política pública e deve urgentemente equalizar seus recursos entre jovens e pessoas idosas. Através de pesquisas de mapeamentos de nível de literacias digitais, incluindo aqui a midiática, o LiteraCity pode ajudar no desenvolvimento e aprimoramento dessas pesquisas.

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Referências:

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DUQUE, M.; PERES-NETO, L. Can older people stop sharing? An ethnographic study on fake news and active aging in Brazil. Online Media and Global Communication, v. 1, n. 3, p. 580–599, 27 set. 2022.
KICKBUSCH, I. S. Health literacy: addressing the health and education divide. Health Promotion International, v. 16, n. 3, p. 289–297, 1 set. 2001.
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