Os diferentes níveis de habilidades digitais (literacias) de pessoas idosas resultaram em diferentes experiências de pandemia em São Paulo? Os painéis LiteraCity “Um olhar qualitativo sobre os impactos da pandemia para pessoas idosas de São Paulo” tiveram como desafio responder a essa pergunta a partir de uma perspectiva qualitativa. A metodologia parecia simples: reunir idosos residentes de diferentes distritos de São Paulo para um bate-papo no Zoom, quando seriam abordados temas como: conectividade, compra de alimentos, transações bancárias e interface com governo digital durante a pandemia.

Expectativa: painel interativo no Zoom

Tínhamos como referência o painel no mesmo formato realizado em 23 de fevereiro de 2022 pela KFF (Kaiser Family Foundation). Nesta data, nove americanos idosos se reuniram no Zoom e a conversa transmitida ao vivo resultou no webinário “The Gift of Experience vs. The Stress of Isolation: Older People Share How They’ve Made it Through The Pandemic”.

Começamos então a seleção dos nove participantes idosos residentes de São Paulo. Os interessados vieram da rede de contato das pesquisadoras e de convites divulgados em grupos de WhatsApp 60+. Os interessados participariam de um pré-estrevista no Zoom, que seria considerada para análises que resultaram em dois relatórios. Os selecionados receberiam então o convite para o bate-papo no Zoom que teria transmissão ao vivo.

Realidade: as pré-entrevistas já mostraram desigualdades com relação ao tipo de acesso à Internet, à conectividade e às habilidades no Zoom

• 02 entrevistados (Bairros de Vila Hermínia e Morro Doce) não conseguiram acessar o Zoom do smartphone. Entrevistas foram realizadas pelo WhatsApp.
• 04 entrevistados não conseguiram habilitar o áudio do Zoom no smartphone:
> 02 entrevistados (Morro Doce e Morro Grande) fizeram a entrevista pelo WhatsApp.
> 01 entrevistado (Jardim da Saúde) fez a entrevista por telefone.
> 01 entrevistado (Vila Romana) fez a entrevista pelo Zoom no computador, mas sem vídeo por problemas na conexão à internet.
• 01 entrevistado (Morro Doce) fez a entrevista pelo Zoom via smartphone com áudio e vídeo.
• 03 entrevistados (Aclimação, Santa Cecília e Vila Monumento) fizeram a entrevista pelo Zoom de computador com áudio e vídeo.
> 01 deles possui computador, mas achou melhor usar o computador do vizinho.

Ajustando expectativa à realidade

Das 10 pessoas idosas que foram entrevistadas na pré-seleção, 9 foram selecionadas para participar do Painel LiteraCity. A seleção privilegiou a diversidade de bairros de São Paulo e um terceiro residente do bairro de Morro Doce, de 82 anos, foi dispensado, concentrando os participantes na faixa entre 60 e 80 anos. Os participantes selecionados foram notificados por WhatsApp.
As dificuldades experimentadas com o Zoom durante a pré-entrevista resultaram no ajuste do formato final do Painel LiteraCity. O painel com transmissão ao vivo foi substituído por duas sessões de conversas gravadas também pelo Zoom, ambas no dia 28 de abril de 2022. A opção pelo painel gravado e posteriormente editado possibilitou que os participantes recebessem suporte durante as conversas, como o desbloqueio do microfone, por exemplo. Essa mudança foi informada aos participantes selecionados por WhatsApp e o aceite de participação no novo formato foi feito também pelo WhatsApp. Cada participante pôde escolher o horário de sua preferência (manhã ou tarde) e todos receberam link para a sessão no Zoom pelo WhatsApp.

Sessões gravadas no Zoom com participantes selecionados:

A mulher de 79 anos residente de Morro Grande escolheu participar da sessão matutina, mas não conseguiu operar o Zoom em seu smartphone. Ela retornou à sessão vespertina após ter contado com o suporte de seu filho para o acesso à sala no Zoom. A mulher de 77 anos residente de Vila Hermínia escolheu participar da sessão vespertina, mas não conseguiu configurar o microfone e a câmera no Zoom, abandonando a sala. A mulher de 63 anos residente da Aclimação não teve disponibilidade para participar de nenhuma das sessões. Tanto ela quanto a mulher residente de Vila Hermínia consentiram que suas entrevistas realizadas durante a pré-seleção fossem consideradas para análise.
As duas sessões gravadas no Zoom foram editadas e resultaram em diversos vídeos publicados no canal LiteraCity no Youtube.

 

A plataforma Zoom como objeto de pesquisa

A plataforma Zoom foi também objeto de pesquisa durante as entrevistas individuais que foram analisadas nos painéis LiteraCity. Os participantes foram perguntados sobre como se tornaram usuários e explicaram suas experiências, desde a instalação até seus usos durante a pandemia da Covid-19.

1) Adoção do Zoom: o papel dos facilitadores

Conectar-se com família e amigos foi o fator motivador para adoção do Zoom pelas mulheres residentes na Aclimação (63 anos), Jardim da Saúde (73 anos), Santa Cecília (73 anos), Vila Monumento (68 anos) e Morro Doce (70 anos), sendo que as três primeiras residem sozinhas.

Para as mulheres residentes de Vila Hermínia (77 anos) e de Morro Grande (79 anos), o Zoom foi instalado por uma pessoa das igrejas que frequentam para que pudessem assistir à missa ou participar do grupo de oração da comunidade. Enquanto a primeira ainda apresenta dificuldades em acessar o aplicativo, para a segunda, o Zoom foi substituído pelo Meets pela limitação de tempo nas reuniões (na versão gratuita do aplicativo). Como ela explica:

“Por que ele [Zoom] tinha aquele tempo certinho. E no grupo… a gente nem acaba de rezar e ele já ia embora. […] Agora o Meet não, ele fica lá quanto tempo sem problema”
Mulher, 79 anos, moradora de Morro Grande

As mulheres residentes na Aclimação (63 anos), Santa Cecília (73 anos), Vila Monumento (68 anos) e Jardim da Saúde (73 anos) receberam suporte remoto de especialistas voluntários, que começou principalmente via WhatsApp. As três primeiras receberam suporte do mesmo especialista, também idoso e membro de um dos grupos de atividade de que participavam antes da pandemia. A última teve o suporte da professora do curso de smartphone do programa de Envelhecimento Ativo sediado em um hospital da capital e que também mantinha suas atividades presenciais antes da pandemia.

“[Ele, o especialista voluntário] se dispôs a ensinar a todos nós como lidar com o Zoom. Então, começou pelo WhatsApp. Ele nos orientou como entrar pela primeira vez no Zoom. E, pelo próprio Zoom, ele foi dando aula pra gente e foi ensinando como lidar. E foi muito bom pra gente. Dali eu abandonei o Skype e eu só uso o Zoom e o Google Meets dependendo […]. Ali teve gente que foi salva por isso. Quando ele fazia as aulas, ele fazia as aulas aos sábado de manhã, e sem cobrar […]. Ele ficou quase um ano dando aula de graça pra gente. E muitas pessoas fizeram depoimentos dizendo: olha, se não fosse isso, eu não sei o que ia acontecer, até meus filhos estão agradecendo por eu poder ter contato com o mundo. Por que os filhos iam fazer o quê com as senhoras sozinhas dentro de casa sem sair, sem nada? Se não fosse o Zoom, como que ia ser?”
Mulher, 63 anos, moradora de Aclimação

2) Trabalho e aprendizado na pandemia

O desdobramento dos usos do Zoom durante o isolamento para a realização de cursos foi marcante entre as mulheres com ensino superior (Aclimação, Jardim da Saúde, Santa Cecília e Vila Monumento).

“Eu fiquei, ainda tô, completamente viciada em Zoom, desde 2020. Era uma coisa assim, de ter quatro, cinco atividades no mesmo dia. Coisa impressionante. Não é muito saudável. Mas aprendi muita coisa e viajei em muita coisa, me distraí muito. A pandemia trouxe coisas legais nesse ponto e não sofri nenhuma perda familiar próxima, apesar de algumas pessoas próximas de amigos terem sofrido”
Mulher, 68 anos, moradora de Vila Monumento

A adoção do Zoom foi facilitada pela familiaridade com o Skype utilizado para o trabalho pelas mulheres residentes na Aclimação e Santa Cecília. Ambas se aposentaram dias antes ou logo no início da pandemia.

“Quando eu trabalhava, a gente já fazia reuniões por aplicativo a distância, vou até me lembrar de outro que a gente tinha. No outro instituto que eu trabalhava era de âmbito nacional, então a gente fazia reunião com outras pessoas que estavam em outros lugares pela internet, Skype… já fazia muita reunião pelo Skype. Então entre o Skype que foi muito mais pela época que eu trabalhava e o Zoom que veio pelo boom da pandemia, foi mais ou menos automático”
Mulher, 73 anos, moradora de Santa Cecília

A moradora da Aclimação continua exercendo atividade remunerada com atendimentos remotos como psicóloga também pelo Zoom. Esse também é o caso da mulher residente de Vila Monumento, que usa a plataforma para trabalho. No caso dela, o Zoom é usado para dar aulas

3) Usuário “fake”: barreiras para uso

Entre os homens participantes do Painel LiteraCity, o morador de Morro Doce (69 anos) conheceu o Zoom através da entrevistadora e usou o aplicativo pela primeira vez para realizar a entrevista no processo de pré-seleção para o painel. Sua experiência revela, entretanto, como uma conexão à internet ruim e como interfaces confusas podem determinar o sucesso na adoção de novos aplicativos.

“Você [a entrevistadora] que falou faz isso, faz assim, porque eu nem sabia que eu tinha esse aplicativo na realidade. Tem muitos aplicativos aqui que eu desconheço ainda. Eu acho que as pessoas de terceira idade, terceira, quarta, quinta, sei lá… a gente tem dificuldade nesse aspecto. Porque você pensa… vou fazer assim, você faz assim, mas não é assim. Não é todo aplicativo. Esse aplicativo até que foi bom porque está lá, clique aqui, você clicou, abriu, tudo bem. Mas tem aplicativo que você clica e você fica esperando por questão da internet não ser boa”
Homem, 69 anos, morador de Morro Doce

Já para o homem de 77 anos, morador de Vila Romana, a adoção do Zoom foi auxiliada por seus parceiros de trabalho (ele não é aposentado) e por voluntário especialista, também idoso, membro de um dos grupos 60+ de que participava presencialmente antes da pandemia. Apesar disso, faz uso parcial do aplicativo. Consegue acessar os links para salas que recebe via WhatsApp, mas desconhece os passos para abrir uma sala no Zoom. Como ele explica, o uso limitado do Zoom é consequência de todo o suporte que recebe, o que torna o aprendizado de outras funcionalidades do aplicativo desnecessário.

“Primeiro, eu sou um usuário fake. Eu tenho um parceiro dos meus projetos de tecnologia. Eu assinei um Zoom e ele que manipulava mais. Tenho outro parceiro, ele que pegava a gravação, salvava, baixava, colocava no Youtube. Tenho dois parceiros que resolveram esses assuntos. É um dos motivos que sou preguiçoso pra aprender. Eu tenho muitos anjos do meu lado […]. Eu entrava e fazia todas as coisas que tinha que fazer. De fato… eu fazia como você fez, mandavam o link e eu entrava. Cômodo, né? Muito cômodo”
Homem, 77 anos, morador de Vila Romana

O que a utilização do Zoom por idosos residentes de São Paulo nos ensinou:

  • Grau de escolaridade e classe econômica refletem problemas de qualidade de conexão, dispositivo disponível para acesso da internet e usos das funcionalidades do aplicativo
  • O apoio de facilitadores, sejam eles familiares ou profissionais, foi fundamental para adoção do aplicativo ainda durante o período de isolamento social.
  • O acesso ao Zoom influenciou a experiência vivida durante a pandemia, tanto em termos de sociabilidade quanto de acesso a atividades profissionais e de aprendizado.
  • O WhatsApp é o aplicativo com o qual os participantes possuem mais familiaridade e pode ser considerado como ferramenta de pesquisa alternativa ao Zoom.

Veja também os relatórios resultantes das análises das pré-entrevistas com participantes do painel LiteraCity.

 

 

 

 

 

 

 

 

Marília Duque
Fundadora e pesquisadora PhD no LiteraCity