A Pesquisa TIC Domicílios investiga o principal motivo declarado para não usuários de internet nunca terem acessado a rede. Necessidade, Interesse, Habilidade e Custo estão entre os motivos mapeados. Entre o público com 60 anos ou mais, a falta de interesse foi crescente em 2018 (34%), 2019 (37%) e 2020 (42%), recuando apenas em 2021 (32%). A falta de interesse declarado pode também ser uma forma de expressar falta de necessidade percebida ou uma estratégia para encobrir o constrangimento da falta de habilidade (Duque, 2022; Duque e Otaegui, 2023).

Este artigo recusa o estereótipo da pessoa idosa como aquela naturalmente avessa à tecnologia e se propõe a contribuir para a discussão da falta de necessidade e de interesse declarada por não-usuários de internet com 60 anos ou mais a partir da Teoria da Privação Relativa (Relative Deprivation Theory – RDT).

A mobilização da RDT para se discutir exclusão digital é de Helsper (2017), que propõe que as desigualdades no âmbito digital são vivenciadas a partir de sua relatividade social. Isso quer dizer que a autoavaliação e percepção da desigualdade desencadeada pela privação digital dependem do contexto social e do momento de vida de cada indivíduo, sendo particularmente influenciadas pelas pessoas próximas e relevantes a ele.

Se esse indivíduo está cercado por pessoas que são referências para ele e elas não enxergam ou não obtêm valor nos recursos advindos do acesso, desenvolvimento de habilidades ou engajamento no âmbito digital para suas atividades diárias, este indivíduo é menos propenso a perceber sua privação digital como problemática.

Etnografia conduzida por Duque (2022) com idosos de classe média de São Paulo ilustra esse mecanismo de comparação interpessoal implicado na experiência subjetiva de privação digital. Uma das alunas do curso de WhatsApp observado pela pesquisadora relatou que só se interessou pelo aplicativo quando percebeu que os encontros de suas amigas do colégio passaram a ser combinados exclusivamente pelo grupo mantido na plataforma. Ela acreditava que o WhatsApp seria apenas um modismo, mas a possibilidade de privação dos benefícios compartilhados pelo coletivo de amigas mudou sua atitude frente à tecnologia. Da mesma maneira, alunas de um curso de dança aberto à Terceira Idade atribuíram valor à adoção de Uber quando experimentaram privação em relação ao professor aposentado e a seus convites para irem juntos a bailes noturnos. Quando argumentavam sobre a segurança no trajeto de volta à noite, elas ouviam do professor “Chama um Uber, pelo amor de Deus”. A percepção de privação junto ao grupo (não poder ir a um baile à noite com a turma) foi catalizador de mudança de atitude em relação ao desejo de adoção e uso da plataforma.

Neste sentido, pouco importa se indivíduos ou grupos de indivíduos com os quais a pessoa idosa não se identifica são retratados como conectados e se o desenvolvimento de habilidades digitais é construído como expectativa ou norma para a sociedade em que vivem. A necessidade da inclusão digital e o interesse que pode promover mudança de atitude e ação visando a adoção de tecnologias digitais são disparados a partir de vínculos pessoais, da percepção de que eles são beneficiados pela conexão e do desejo de manutenção de pertencimento a uma coletividade.

Helsper (2017) consolida essa discussão na proposta de uma Teoria da Privação Digital Relativa (Relative Digital Deprivation Theory –RDDT) aplicada a pesquisas de hiatos digitais (digital divide).

Nessa abordagem, a autora propõe que desigualdades objetivas (de acesso, de habilidades ou de benefícios provenientes da interface com o digital, por exemplo) sejam tratadas como exclusão subjetiva, relativa e situacional, sendo esta aquela capaz de levar a uma mobilização individual e coletiva em direção à superação das barreiras para inclusão.

A teoria da Privação Digital Relativa (RDDT) é particularmente importante para o desenvolvimento de produtos, serviços e políticas públicas que visem mudar de atitudes e incentivar comportamentos favoráveis à adoção de tecnologias digitais.

Mapear como indivíduos e grupos sociais valorizam ou não o uso de TICs em suas práticas cotidianas, a partir das normas e condutas que referenciam seus mecanismos de comparação interpessoal, pode contribuir para o entendimento das razões pelas quais consumidores e cidadãos, mesmo quando objetivamente investidos dos recursos, optam por não se tornarem usuários dessas tecnologias. Além disso, essa comparação com o entorno social pode operar tanto em termos de valoração e utilidade, quanto em termos de identificação com um grupo capaz para essa adoção – ponto sensível para a inclusão de pessoas idosas, que podem reproduzir aos pares o discurso idadista de que a aprendizagem e o uso de tecnologia são naturais à geração mais jovem dos nativos digitais.

Neste sentido, como conclui também Helsper, intervenções dirigidas à inclusão digital tendem a ter maior adesão quando focadas não nos benefícios para o indivíduo, mas nos ganhos de uma coletividade conectada com ênfase na responsabilidade individual para o bem comum percebido sempre em um contexto social e atualizado em situações específicas. Afinal, é sempre em determinado entorno e momento que se dá a percepção relativa de privação necessária à mobilização para superação das condições de desigualdades digitais.

A partir de metodologias qualitativas, o LiteraCity realiza mapeamento de Privação Digital Relativa, levantando atitudes e comportamentos decorrentes do valor relacional e situacional atribuído a tecnologias digitais em dado grupo e contexto sociais.

 

Marília Duque
Fundadora e pesquisadora PhD no LiteraCity

 

 

___________________
Referências:

Duque, Marilia. Ageing with Smartphones in Urban Brazil: a Work in Progress. UCL Press, 2022.
Duque, Marília; Otaegui, Alfonso. Digital dependency as a burden. Impacts of successful/active aging for tech adoption in Brazil and Chile. Anthropology & Aging. Accepted on Mar, 2023.
Helsper, E. J. (2017). The Social Relativity of Digital Exclusion: Applying Relative Deprivation Theory to Digital Inequalities. Communication Theory, 27(3), 223–242. https://doi.org/10.1111/comt.12110
Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. 2019. TIC Domicílios 2018: Pesquisa Sobre o Uso Das Tecnologias de Informação e Comunicação Nos Domicílios Brasileiros. 2019. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil. https://www.cetic.br/media/docs/publicacoes/2/12225320191028-tic_dom_2018_livro_eletronico.pdf.
Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. 2020. TIC Domicílios 2019: Pesquisa Sobre o Uso Das Tecnologias de Informação e Comunicação Nos Domicílios Brasileiros. 2020. 1. ed. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil. https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20201123121817/tic_dom_2019_livro_eletronico.pdf.
Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. 2021. TIC Domicílios 2020: Pesquisa Sobre o Uso Das Tecnologias de Informação e Comunicação Nos Domicílios Brasileiros: Edição COVID-19 :Metodologia Adaptada. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil. https://cetic.br/media/docs/publicacoes/2/20211124201233/tic_domicilios_2020_livro_eletronico.pdf.
Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. 2022. TIC Domicílios 2021: Pesquisa Sobre o Uso Das Tecnologias de Informação e Comunicação Nos Domicílios Brasileiros. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil.
https://cetic.br/pt/publicacao/pesquisa-sobre-o-uso-das-tecnologias-de-informacao-e-comunicacao-nos-domicilios-brasileiros-tic-domicilios-2021/.