Para entender por que os benefícios atingidos por usuários de Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) podem ser o maior indicador para inclusão digital, é preciso entender o que significa literacia digital.

Literacia digital é, antes de tudo, a habilidade de se conectar e acessar ferramentas e softwares. Porém, literacia digital trata também das habilidades necessárias para usar esses recursos digitais. Aqui estamos falando desde habilidades operacionais e técnicas até habilidades sociais, comunicacionais e criativas. Porém, uma definição mais recente (van Deursen; Helsper, 2015) considera como literacia digital a capacidade de um indivíduo de converter acesso e uso em benefícios que extrapolam o âmbito digital, trazendo ganhos para sua vida em sociedade.

Esses níveis de literacia (acesso, uso, resultados) são influenciados por diferentes fatores. O acesso é amplamente determinado por contexto socioeconômico e pela infraestrutura disponível no território (Dimaggio; Hargittai; Russell Neuman; Robinson, 2001; van Dijk, 2012). Já as habilidades necessárias para o uso são influenciadas por alfabetização e nível de educação (van Dijk; van Deursen, 2014). Juntos, esses fatores resultam no potencial do usuário de realizar seus objetivos e de atingir resultados que possam beneficiá-lo.

A mesma relação pode e deve ser considerada para mensurar os níveis de exclusão digital. Ou seja, a exclusão pode se dar por impossibilidade de acesso (primeiro nível), inabilidade de uso (segundo nível) ou por incapacidade de se concretizar resultados e usufruir seus benefícios (terceiro nível).

E por que isso é particularmente importante para o desenho de políticas inclusivas? Porque cidadão conectado não significa cidadão empoderado para se beneficiar dos serviços essenciais que passam a estar disponíveis no âmbito digital e se tornam, cada vez mais, mandatórios para o acesso à cidadania. São resultados efetivos viabilizados por esses serviços que as políticas devem almejar e mensurar. Nessa mensuração, podem ser adotados quatro macro domínios para classificação de usos e resultados (Helsper; Van Deursen; Eynon, 2015):

• Resultados econômicos: relacionados à riqueza e ao emprego, como ativos monetários ou propriedades.
• Resultados sociais: relacionados a melhores relações formais e informais, redes e apoio social, incluindo participação política e cívica.
• Resultados culturais: relacionados ao aumento dos sentimentos de pertencimento e maior identificação com certos grupos socioculturais.
• Bem-estar individual: Relacionados aos aspectos físicos e psicológicos do bem-estar, bem como da autorrealização (hobbies e atividades de lazer).

Toda estratégia de digitalização de serviços que vise resultados tangíveis deve ter em mente a Dona Maria ou qualquer outro usuário para quem esses serviços são desenvolvidos – o que significa conhecer suas literacias digitais em termos de acesso e skills. Caso contrário, os serviços digitais pensados para serem menos burocráticos e mais eficientes, podem se tornar pouco inclusivos e efetivos, tanto em termos de acesso quanto de usabilidade.

O Painel LiteraCity 02 com idosos residentes de São Paulo ilustra exclusões sociais possíveis na interface com o governo digital. Também nessa pesquisa o grau de escolaridade e classe social se mostraram determinantes das habilidades digitais, além de determinarem também a possibilidade de acesso exclusivo por smartphone ou multidispositivo.

Além disso, evidenciou alguns problemas de usabilidade inerentes às interfaces e plataformas que oferecem serviços públicos.  Foi possível observar, por exemplo, como usuários 60+ que fazem compras online e usam aplicativos de banco apresentaram dificuldades em acessar o Certificado de Vacinação da Covid-19 pelo aplicativo Conecte Sus, mesmo tendo conseguido realizar o serviço Dinheiro a Receber na plataforma Gov.br. Duas usuárias com a mesma idade, 73 anos, ilustram esse cenário. Entretanto, enquanto uma conseguiu se beneficiar do certificado digital em uma segunda tentativa no aplicativo do Poupa Tempo, outra passou a portar o certificado de papel.

O LiteraCity ajuda desenvolvedores e gestores a pensarem suas estratégias de digitalização e inclusão digital a partir dos resultados atingidos por seus usuários nos segmentos: econômicos, sociais, culturais e de bem-estar individual, avaliando-os em termos de quantidade (realização de) e de qualidade (satisfação com). Vamos conversar?

 

Marília Duque
Fundadora e pesquisadora PhD no LiteraCity

 

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Referências:
DiMAGGIO, P.; HARGITTAI, E.; NEUMAN, W. R.; ROBINSON, J. P. Social Implications of the Internet. Annual Review of Sociology, v. 27, n. 1, p. 307-336, 2001.
HELSPER, E. J. Inequalities in digital literacy: definitions, measurements, explanations and policy implications. In: TIC domicílios 2015 = Survey on the use of information and communication technologies in Brazilian households : ICT households 2015. São Paulo, Brasil: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016 , pp. 175-185. http://eprints.lse.ac.uk/68329/
HELSPER, E. J.; VAN DEURSEN, A. J. A. M.; EYNON, R. Tangible Outcomes of Internet Use. London: LSE, 2015.
VAN DIJK, J. A. G. M. The Evolution of the Digital Divide. The Digital Divide turns to Inequality of Skills and Usage. Digital Enlightenment Yearbook, p. 57-75, 2012.
VAN DIJK, J.; VAN DEURSEN, A. J. A. M. Digital Skills. Unlocking the Information Society: London: Palgrave Macmillan, 2014.