O painel LiteraCity 01 entrevistou 09 residentes idosos de diferentes distritos de São Paulo. O objetivo foi analisar os impactos dos níveis de habilidades digitais (literacias) para conectividade, hábitos alimentares e operações bancárias durante a pandemia. A análise foi resumida em 11 insights para desenvolvedores e gestores públicos.

1. Qualidade de Sinal
A velocidade é um dos critérios que impacta na experiência dos usuários, prejudicando experiências desde lazer (jogos) até a realização de serviços como atividades bancárias. Essa limitação pode ser uma barreira para o uso da internet e, no caso de pessoas idosas, pode resultar na interiorização de uma falha e no desencorajamento para a expansão de usos de aplicativos. A qualidade do sinal varia significativamente de um distrito a outro de São Paulo (PwC; Instituto Locomotiva, 2022). É “residual” no distrito de Anhanguera (mais de 10 mil habitantes por antena) e “aceitável” no distrito da Lapa (até 1 mil habitantes por antena).

2. Conectividade Significativa
Entre os participantes do Painel LiteraCity, aparelho e velocidade da internet se apresentam como principais fatores comprometedores de uma conectividade significativa. Conectividade significativa é mensurada a partir de quatro critérios (frequência, aparelho, dados e velocidade) e resulta na experiência necessária para que usuários de internet se beneficiem da rede em toda a sua potencialidade (Alliance Affordable Internet, 2020)

3. Smartphone para Multidispositivos
O acesso à internet se dá exclusivamente pelo smartphone para 64% dos brasileiros idosos (TIC Domicílios, 2020). O Painel LiteraCity demonstrou que, mesmo entre os usuários idosos que se declaram multidispositivos, o smartphone pode acabar sendo o meio de acesso exclusivo à rede já que os computadores geralmente estão desativados, seja por estarem quebrados, seja por oferecerem uma experiência de navegação pior do que a percebida no smartphone.

4. Interfaces amigáveis
A centralidade do smartphone no acesso de pessoas idosas à internet demanda a priorização do desenvolvimento de interfaces mobile que considerem características naturais do envelhecimento e suas especificidades motoras e cognitivas (Rocha e Padovani, 2016). Além disso, há de se considerar as especificidades do dispositivo. O smartphone usado por pessoas idosas muitas vezes é herdado de parentes e amigos, apresentando problemas de bateria e memória que podem, por exemplo, comprometer o download de novos aplicativos (Duque, 2022).

5. Rede no WhatsApp
O WhatsApp é o aplicativo com o qual o usuário idoso mais possui familiaridade e a motivação para seu uso está relacionada a centralidade de aplicativos de mensagens na comunicação entre as famílias transnacional, estendida e nuclear (Nedelcu, 2017; Plaza & Plaza, 2019; Taipale & Farinosi, 2018; Webb, 2015). Além das comunicações cotidianas, o aplicativo teve papel central na compra de alimentos de rede local durante a pandemia.

6. Facilitadores
A adoção de aplicativos outros que o WhatsApp depende de suporte de facilitadores. Esse suporte pode ser de familiares ou amigos com quem as pessoas idosas possuem uma relação afetiva (“warm experts”) ou pode advir de profissionais (“cold experts”) com quem elas não possuem relação pessoal (Hänninen et al, 2021). A influência de especialistas voluntários foi observada entre quatro entrevistados no processo de adoção do Zoom. No caso de aplicativo de mobile banking, a gerente de banco, cujo suporte ocorreu via WhatsApp, aparece como figura central para uma das entrevistadas.

7. Grau de Escolaridade
Escolaridade é considerada o fator de influência mais consistente para a adoção de TICs –Tecnologias de Informação e Comunicação (Van Deursen & Van Dijk, 2011). No Painel LiteraCity, o uso de internet e mobile banking se mostrou exclusivo para os participantes com nível superior completo (residentes dos bairros da Aclimação, Jardim da Saúde, Santa Cecília e Vila Monumento). Pesquisa TIC Domicílios 2020 aponta que entre usuários de internet, 79% dos brasileiros com ensino superior fizeram consultas, pagamentos ou transferências financeiras enquanto 18% com ensino fundamental o fizeram.

8. Necessidade e Preferência
A adoção de aplicativos por pessoas idosas não é resultado apenas de suas habilidades digitais, mas também é influenciada por preferência ou percepção de necessidade. A preferência influenciou, por exemplo, a decisão de não interromper ou retomar rapidamente as compras de alimentos em lojas físicas. Esse comportamento resultou da preferência por comparar preços e por ver as mercadorias antes da compra. Com relação à percepção de necessidade, a divisão de responsabilidades ne família pode influenciar a distribuição de aplicativos entre os membros conectados (Duque, 2022). Esse é o caso de um dos participantes do Painel LiteraCity que não utiliza aplicativos de bancos porque as transações financeiras ficam a cargo de sua mulher. Por outro lado, essa divisão familiar de tarefas pode ser atualizada justamente pelo grau de habilidade digital de cada membro, como é o caso de uma das participantes. Em sua residência, os serviços realizados pela internet ficaram integralmente a cargo da filha, que é também a única que utiliza o computador disponível no domicílio.

9. Usuário Fake
O fato do usuário idoso acessar um aplicativo não significa que ele faça uso de seus recursos em toda sua potencialidade ou que ele consiga atingir os benefícios esperados por ele. No caso do Zoom, um dos participantes se qualificou como um usuário “fake” do aplicativo. Ele consegue acessar as salas a partir de links que recebe pelo WhatsApp, mas não consegue por exemplo abrir suas próprias salas. Neste sentido, indica-se que levantamentos e pesquisas sobre o uso de aplicativos considerem não só o acesso e manuseio do aplicativo, mas sua utilização em termos de benefícios obtidos. Essa é uma distinção importante para mapeamento de literacias digitais entre populações. Enquanto o primeiro nível diz respeito a acesso e o segundo às operações, o terceiro nível de literacia digital investiga as habilidades digitais necessárias para que os usuários atinjam os objetivos e ganhos esperados por eles (Helsper, 2016).

10. Tempo de Aposentadoria
Entre os participantes do Painel LiteraCity, três mulheres podem ser identificadas como aquelas com maiores habilidades digitais, traduzida na utilização do Zoom, uso de aplicativos para compras de alimentos e mobile banking. Todas têm curso superior e são aposentadas, sendo que duas delas se aposentaram pouco antes ou logo depois do início da pandemia e já utilizavam computador e internet para o trabalho. Duas delas continuam exercendo atividades remuneradas, sendo essas realizadas exclusivamente via trabalho remoto. A terceira faz uso da internet para cursos e participa de um grupo de empreendedores sêniores que se reúne semanalmente via Zoom. Não só a idade, mas tempo desde a aposentadoria e tipo de trabalho realizado durante a vida profissional devem ser considerados como preditivos de uso de tecnologia (Duque, 2022).

11. A importância do Qualitativo
O Painel LiteraCity demostra a importância da pesquisa qualitativa aliada a dados quantitativos. A partir das entrevistas consideradas para esse relatório, foi possível entender a relação entre acesso e território na oferta e realização de serviços online. Somado a isso, aponta-se para a necessidade de aprofundamento de dados sobre usuários multidispositivos e sobre o uso parcial ou integral de determinado aplicativo. Por último, destaca-se a oportunidade de se compreender as habilidades digitais de pessoas idosas além da idade, evitando-se assim o idadismo. Como apontado nesse relatório, a adoção e uso de tecnologias por residentes idosos de São Paulo durante a pandemia foi reflexo de múltiplos fatores, que incluem: tipo de dispositivo, suporte, arranjo familiar, tempo desde a aposentadoria, tipo de trabalho realizado durante a vida, escolaridade e também preferência e percepção de necessidade.

Baixe o relatório completo aqui.

 

Marília Duque
Fundadora e pesquisadora PhD no LiteraCity

 

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Referências:

PwC; Instituto Locomotiva. 2022. O Abismo Digital no Brasil.
DUQUE, M. Ageing with Smartphones in Urban Brazil: a work in progress. UCL Press: 2022.
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HELSPER, E. Inequalities in digital literacy: definitions, measurements, explanations and policy implications. In: ICT households 2015: Survey on the use of information and communication technologies in Brazilian households. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016. p. 175–185.
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