O Painel LiteraCity 02 da série “Um olhar qualitativo sobre os impactos da pandemia para pessoas idosas de São Paulo” tratou especificamente da interface com o Governo Digital. O painel ouviu e analisou as experiências de 09 idosos residentes de diferentes distritos da capital. Foi possível observar como o território reflete desigualdades relacionadas a grau de escolaridade, conectividade, dispositivo utilizado para acesso à internet e níveis de habilidades digitais.

 

Helsper (2015) propõe que as habilidades digitais sejam avaliadas em três níveis: acesso, usos e benefícios. Isso significa avaliar as habilidades que o usuário possui para acessar um serviço digital, para usá-lo e para conseguir o resultado esperado ao utilizar o serviço. Na interface com o governo eletrônico, isso significa que nem todos os usuários que acessam e fazem uso de uma plataforma ofertada digitalmente têm as habilidades digitais necessárias para concluir o serviço e usufruir do benefício prometido por ela. É preciso fazer essa distinção entre acesso, uso e resultado obtido na avaliação da usabilidade e eficiência das interfaces do governo eletrônico.

Entre os serviços de governo eletrônico relatados pelos participantes do Painel LiteraCity, esses foram aqueles em que foram obtidos os resultados esperados (tabela). O destaque é para usuárias mulheres, com nível superior e acesso multidispositivo (tanto pelo smartphone quanto pelo computador).

 

Estratégias adotadas para ultrapassar barreiras de habilidade digital

Entre as participantes do Painel LiteraCity que usufruíram de um benefício resultante de um serviço de governo eletrônico ou seu equivalente, é possível identificar três estratégias compensatórias para  as barreiras enfrentadas com a interface digital:

1. Terceirização
A primeira estratégia é a de terceirizar o serviço para “especialistas”. Esse foi o caso da mulher de 68 anos, moradora de Vila Monumento, que contratou uma empresa para fazer a importação de Cannabidiol para sua mãe. Nesse processo, terceirizou também a criação de uma nova senha Gov.br para sua mãe, bem como os trâmites “burocráticos” mediados pela plataforma.

“Minha mãe está tomando cannabidiol[…]. Só que esse é um processo pela Anvisa… o ano passado, em outubro, a médica sugeriu… uma empresa […] que traz da Flórida, sei lá. […] Minha mãe tomou… agora ela [a médica] sugeriu outra dose… mas essa coisa é muito cara… 60 ml é R$ 1.890,00 reais mais frete internacional […]. Aí me liga [a empresa importadora], olha, o Gov.br… a gente não tem o acesso. Dá pra você entrar e fazer… Eu falei o quê? Pagar 1900 reais e eu tenho que fazer a burocracia? Eu fiquei brava mesmo… Aí quando eu ameacei… está no meu cartão de crédito, mas eu cancelo a compra. No final, eu tive que estar presente porque eles dão 15 minutos de prazo pra você passar o número do acesso… pro meu email que estava indo. Então veio no meu email e eu tive que dizer em 15 minutos qual era o acesso pra ela poder fazer no Gov.br. Por isso que eu estou com esse Gov.br na cabeça. […] Precisava mudar a senha, aí ela falou: a senhora não quer fazer? É uma senha simples? [ela perguntou]. Não, tem que ter número… Não, pode fazer [delegando a criação da nova senha para a atendente]. Até que ela fez bacaninha [explicando que a senha é fácil de memorizar]. Mas é isso a minha experiência de Gov.br, com a minha mãe. Eu não imaginei que ia ser tão simples, eu achei que ia ser uma complicação”
(Mulher, 68 anos, moradora de Vila Monumento)

2. Atalho Institucional
Entre as participantes do Painel LiteraCity, outra estratégia observada para compensação de habilidade digital necessária ao uso de serviço de governo eletrônico foi a escolha de um “atalho institucional”. Prado e Trebilcock (2018) criaram o conceito de ‘institutional bypass’ (atalho institucional, tradução nossa) para tratar das alternativas criadas para ultrapassar a demora ou ineficiência de instituições. Essas alternativas não são, entretanto, soluções informais. Ao contrário, são alternativas oferecidas por instituições criadas para esse fim, resultando na ampliação das escolhas disponíveis ao usuário.

O “institutional bypass” deve, portanto, apresentar alguma funcionalidade nova ou executar uma mesma funcionalidade de maneira melhor que a ofertada anteriormente pela instituição original. Neste sentido, o “intitutional bypass” tem sempre uma natureza relacional. Os autores usam o Poupatempo para exemplificar o que seria um “institutional bypass” no cenário brasileiro. [24].

Em 2020, durante a pandemia de COVID-19, o Poupatempo incluiu o aplicativo Poupatempo Digital entre seus canais digitais de atendimento. Naquele momento, o aplicativo oferecia mais de 40 serviços também disponibilizados pelo site, além de 23 serviços ofertados exclusivamente pelo app. Em novembro de 2021, já eram 160 serviços disponíveis nos canais digitais do Poupatempo, que contabilizaram 35 milhões de atendimentos naquele ano. Entre esses serviços, estava o Certificado de Vacinação contra Covid-19, disponibilizado também pelo aplicativo do governo federal Conecte Sus.

Para a mulher de 73 anos, moradora de Santa Cecília, o aplicativo Poupatempo Digital funcionou como um “atalho institucional” em relação ao aplicativo Conecte SUS. Isso porque, ao tentar obter o Certificado Nacional de Vacinação COVID-19 pelo Conecte SUS, ela encontrou dificuldades e abandonou o aplicativo. Ela fez então uso de outra opção institucional disponível para realização do mesmo serviço, na qual obteve o resultado esperado.

“Eu baixei no Poupatempo, porque o ConecteSUS por alguma razão eu me engasguei lá, alguma coisa que eu não soube ir muito adiante… mas o Poupatempo tinha lá a opção do certificado de vacina. Aí eu baixei, tá aqui… Nesse fim de semana eu fui naquela exposição do Sebastião Salgado e tinha que mostrar certificado. Aí, até porque como fica muito tempo sem usar o aplicativo, você parece que tem que recomeçar o aplicativo até chegar no lugar que você precisa para ver o bendito certificado. Aí engasguei um pouquinho lá… nossa, por quê? Eu já fiz tantas vezes, eu já usei, por que eu não estou fazendo agora? Até que cheguei no lugar que eu precisava para ver o certificado lá no Poupatempo”
(Mulher, 73 anos, moradora de Santa Cecília)

3. Gambiarra
Entre as participantes do Painel LiteraCity, uma terceira estratégia compensatória foi acionada para se atingir benefício semelhante ao prometido por serviço de governo eletrônico. Diferentemente das outras duas, ela resulta em uma solução informal e improvisada. Em pesquisa realizada também com residentes idosos de São Paulo, Duque (2022) propõe o uso do termo “gambiarra” para descrever essas soluções no âmbito digital. Dicionarizado como “extensão puxada fraudulentamente para furtar energia elétrica; gato”, o termo é usado no cotidiano para se referir a soluções improvisadas a partir de recursos limitados.

A autora traz casos diversos e criativos que visam os problemas e necessidades do cotidiano mediado pela tecnologia. Entre eles está a participante que tentou acessar seu cartão de identificação do SUS pelo aplicativo Agenda Fácil, disponibilizado na cidade de São Paulo. Como teve dificuldades no aplicativo, ela fez uma “gambiarra”: tirou a foto de seu cartão do SUS com seu smartphone e salvou a imagem no seu Google Drive. Apresentando a imagem nas suas consultas na rede pública de saúde, ela chegou a resultado similar em termos de benefício usufruído.

Estratégia semelhante foi observada no Painel LiteraCity no relato da mulher de 68 anos, moradora de Vila Monumento. Apesar de ter o Conecte SUS instalado em seu smartphone, ela nunca tentou usá-lo. O motivo foi a má reputação do app, advinda da experiência de amigas e familiares. Sua solução foi então improvisada, configurando uma gambiarra como proposto por Duque (2022). Ela tirou uma foto de seu comprovante de vacinação em papel e o salvou em uma conversa no WhatsApp. Ela não obteve o a versão digital do Certificado Nacional de Vacinação COVID-19 como disponibilizado pelo Conecte SUS (e também pelo Poupatempo), mas obteve o mesmo benefício a partir de um caminho informal que mobilizou os recursos do aplicativo com o qual ela possuía familiaridade – neste caso, o WhatsApp.

Além da habilidade: interface e sistema

É pertinente destacar que essas estratégias foram utilizadas por usuárias de internet 60+ que obtiveram sucesso em outros serviços realizados de governo digital. Além disso, trata-se de usuárias de mobile banking e de consumidoras que realizam compras pela internet. Ainda assim, observou-se que as habilidades digitais adquiridas no uso de serviços digitais diversos não são garantia de êxito em todo e qualquer site ou aplicativo. Durante o painel LiteraCity, essas usuárias fizeram menção a problemas do sistema e à usabilidade ruim das interfaces como barreiras para suas experiências com governo digital.

“O que eu usei mesmo do governo foi esse daí [Valores a Receber], viu? […]. Você entra e eles falam pra entrar no site do Govbr. Por exemplo, você tem dinheiro a receber, retorne tal dia. Aí você retorna naquele dia no próprio site. Aí eu retornei naquele dia. Por exemplo, acho que era dia 8… aí não conseguia, não conseguia… aí vem lá: retorne no dia 12. Aí retornei no dia 12. […] Acho que no dia 8 congestionou [o site, o sistema] que era o primeiro dia, aí eles passaram pro dia 12. Marcaram outro e quando eu vi… tenho quarenta e cinco centavos pra receber… nem precisava ter perdido tempo”
(Mulher, 73 anos, moradora de Jardim da Saúde)

“Bom, esse ano, assim, [renovei] a carteira de motorista, a CNH. Eu fiz online e estava toda prosa… ensinei as amigas. Aí a semana passada, uma amiga veio aqui… porque ela não sabia como fazer. Ficamos duas horas, o negócio estava fora… eles devem ter mudado alguma coisa, porque não rolava. Eu fiz pelo que me disseram que era mais fácil, pelo Poupatempo, o site do Detran. Eu fiz tudo bonitinho, deu tudo certo. Eu fui lá fazer o exame físico, né? E foi tudo tranquilo. Paguei o banco também online. A única coisa que não foi online foi o exame físico, médico. Agora o da minha amiga, tentamos no Poupatempo, tentamos direto no Detran… depois ficou girando, girando”
(Mulher, 68 anos, moradora de Vila Monumento)

“Os aplicativos de serviços públicos, eles têm que ser muito testados. Tem que ser uma palavrinha que eu aprendi até no trabalho que eu fazia, tem que ser orgânico, tem que ser aquele que eu entro aqui e já diz assim ‘clique aqui’. Você quer ver isso? Clique aqui. Agora você vai fazer assim. Agora se a sua intenção é essa, ou essa, ou essa, o que que você vai marcar? Tem que ser orgânico, pra pessoa ir navegando, transitando ali. Eu sei que pra chegar nesse ponto de ser orgânico, ele tem que ser muito testado. Às vezes os serviços dos aplicativos eles são desenhados maravilhosamente bem por engenheiros perfeitos, engenheiros em tecnologia perfeitos, mas não são muito testados com o usuário real que vai lançar mão daquele aplicativo
(Mulher, 73 anos, moradora de Santa Cecília)

“Inteligência de baixo”

Seja compensando a falta de uma habilidade digital ou a usabilidade ruim de um aplicativo, é preciso reconhecer que as estratégias usadas pelas participantes do painel LiteraCity para obter os benefícios esperados da interface com governo digital são também um conhecimento, produzido de maneira informal e imprevisível, mas nem por isso ineficiente. A antropóloga Katrien Pype (2017) chama esse conhecimento de uma “inteligência de baixo”. Como propõem os antropólogos Miller e colegas (2022), aprender com essa inteligência é uma oportunidade de se entender que soluções funcionam em cada contexto socioeconômico e cultural.

Em outras palavras, é uma oportunidade de aproximar projetos de digitalização e experiências a partir das práticas e consumos de usuários reais em condições de uso reais. Para acessar a análise completa do Painel LiteraCity 02, acesse aqui e preencha formulário para download do retatório gratuito.

Marília Duque
Fundadora e pesquisadora PhD no LiteraCity

 

Referências
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DUQUE, M. Ageing with Smartphones in Urban Brazil: a work in progress. London: UCL Press, 2022.|
HELSPER, E. Inequalities in Digital Literacy: definitions, measurements, explanations and policy implications. Em: Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domícilios brasileiros: São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2016. p. 175–185.
HOUAISS, A.; VILLAR, M. DE S.; FRANCO, F. M. DE M. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
MARI, João d. Carteira digital da vacina está disponível no aplicativo Poupatempo Digital. CNN. 01 set. 2021. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/saude/carteira-digital-da-vacina-esta-disponivel-no-aplicativo-poupatempo-digital/
MILLER, D. RABHO, L. A.; AWONDO, P.; DE VRIES, M.; DUQUE, M.; GARVEY, P.; HAAPIO-KIRK, L.; HAWKINS, C.; OTAEGUI, A.; WALTON, S.; WANG, X.O Smartphone Global: uma tecnologia para além dos jovens. London: UCL PRESS, 2022.
PRADO, M. M.; TREBILCOCK, M. J. Institutional Bypasses: A Strategy to Promote Reforms for Development. 1. ed. Cambridge University Press, 2018.
PYPE, K. Smartness from Below: Variations on Technology and Creativity in Contemporary Kinshasa. Em: MAVHUNGA, C. C. (Ed.). What do science, technology, and innovation mean from Africa? Cambridge, MA: The MIT Press, 2017. p. 97–115.
POUPATEMPO (2022); Governo do Estado de São Paulo. Dados estatísticos. Disponível em: https://www.poupatempo.sp.gov.br/wps/portal/poupatempoTaOn/dados-estatisticos/
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